As crendices

buda24

(texto longo, a exorcizar a irritação):

Vou-me casar. Depois de amanhã. Apanho o avião, de Maputo para Lisboa, tão perto da cerimónia que até causei algum “frisson” nos meus mais próximos, até no geral dos convidados, naquilo do “se no caminho acontece alguma coisa…”, um qualquer algo que possa prejudicar a cerimónia. A minha noiva, a mulher da minha vida, por quem estou apaixonado, apesar desta idade que já me ocorre, veio à frente, há já quatro dias, para ultimar preparativos.

Entro no avião e constato que o acaso me senta ao lado de um conhecido. Jurista, antigo cooperante na Universidade Eduardo Mondlane, agora visita recorrente em Maputo, e com o qual já organizei sessões comuns, palestras e até sessões de apresentação de uma revista que ele coordena. Um tipo refinado, daqueles que percebi acima da mole que o Estado partidarizado costuma catapultar. Sorri-me, saúda e saudamos a coincidência, que nos faz juntos nesta noite de cruzarmos tamanha distância.

Bagagens arrumadas, preparativos terminados, cintos apertados, livros e revistas nos bolsos dianteiros, o avião parte. Conversamos, pergunta-me sobre a sempre complexa situação política moçambicana, de qual a minha opinião sobre o propalado “potencial económico” do país, acerca das competências e incompetências da política europeia, a célebre “ajuda”. Claro que abordamos a situação da dita “comunidade” portuguesa, tão aumentada nestes últimos anos. Fiel ao meu percurso inflicto para algumas recentes mutações nas artes visuais e até na literatura do país, procurando alertá-lo para vultos diversos dos já sacralizados.

O mapa de voo, sempre hipnótico, até enjoativo, já nos mostra no Zimbabwe, e sobre todos estes assuntos já balbuciei os meus estreitos saberes. Mas o sono ainda nos tarda. Solidária, a hospedeira traz-me uma preciosa miniatura, para o meu vizinho apenas uma água, compatível com o seu perfil frugal. Ele não deixa esmorecer a conversa e pergunta-me, sorridente, o que vou eu fazer a Portugal. Feliz, digo-lho, isto de que “vou-me casar” e daqui a dois dias. Felicita-me, expressivo, e até fingimos brindar, ainda que ele de água na mão. E pergunta-me onde me irei casar, “em Lisboa” anuncio. E “em que igreja?”. Respondo-lhe que me casarei no registo e ele surpreende-se, num afincado “porquê?”. “Porque sou ateu”, riposto-lhe com total placidez. É-lhe ainda mais vincada a surpresa, uma quase estupefacção que lhe noto na expressão. E enceta uma conversa de conversão, simpática, suave, no fundo sobre a possibilidade da fé nos ser universal. “É Opus”, dele penso, com este meu desagrado não só pelas fascizantes sociedades semi-secretas como pelos proselitismos religiosos (e outros, e outros), assim completamente fiel ao Clint, nisso do não se respeitar quem nos aparece à porta de casa a pregar uma qualquer religião.

Mas estou noivo casadoiro, até quase eufórico. E também estou aqui aprisionado, no banco do avião, a quase dez horas da Portela de Sacavém. Por isso, diante desta sua repetida insistência na possibilidade da minha conversão, à sua até simpática esperança que isso ocorra, e quiçá em breve, lembro-me do patusco Soares, a enganar o pagode naquela sua aparente leveza, e returco-lhe, ainda sorridente, que “não tenho a graça da fé” e espero que assim o assunto morra, e que nos dirijamos para qualquer outro rumo dialogante ou mesmo ao mero silêncio da leitura ou aos prazeres do sono viajante. Vã esperança, que a verve só se lhe desperta diante desta consabida incorrecção doutrinária. E insiste, tem o discurso bem oleado, o (agora) “sacana”, pois acabei de perder a paciência para esta sua impertinência católica. E por isso interrompo-lhe (mais) esta investida e digo-lhe, em total improviso (sim, eu sou um tipo reactivo, funciono quando me chateiam, quando me beliscam da constante modorra que me é vida): “Sabe? Sou ateu por uma dupla razão: por uma superioridade intelectual face aos crentes, pois não preciso de crer numa qualquer entidade, mais ou menos antropomórfica, como causa de tudo isto; e por uma superioridade ética, não preciso de fundamentar os valores aos quais adiro numa qualquer legitimidade metafísica, que os torne sagrados”. Não lhe junto o evidente corolário implícito, o “vai-te foder”, mas ele percebe-o, o sorriso melífluo esmaece-se-lhe em ricto.

A conversa morre, parece que, de súbito, chegou o momento de tentar dormir. Minha sorte que estou, como sempre, na coxia, e que me levanto a esticar as pernas. Chegamos a Lisboa e é curta a despedida, quase apenas aceno no tapete das malas.
Não sou prosélito do ateísmo. Nem com a minha filha. A esta, quando me surpreendeu aos seus cinco anos a perguntar-me “pai, o que é Deus?”, respondi-lhe “fala com a mãe sobre isso, que nada sei sobre o assunto”, crente que a sua mãe católica a poderia informar, e mais crente ainda que é a ela que cumpre formar o seu regime intelectual. Na minha economia quotidiana não falo do assunto, não me é central. Apenas reajo quando algum ignorante atrevido (há imensos atrevidos ignorantes) me vem com o muco intelectual de que “ser ateu é ter uma fé”, uma imbecilidade autoclismizável que tantos patetas têm a mania de botar, com total impudicícia. E esta minha afirmação, na qual creio por completo, da minha superioridade ética e intelectual sobre qualquer aparvalhado crente em entidades inexistentes, só me brotou por irritação com a falta de educação do evangelista insistente.

E noutra circunstância também me explode isto, esta ira diante da desvergonha alheia. Quando os bem-pensantes – normalmente filhos dos vis legados fascistas euro-austrais e comunistas, sempre dos inimigos da democracia liberal – nos vêm, com apurada retórica e aparente elevação, negar o direito a execrar publicamente a superstição alheia. Isso de não termos o direito de afirmar o absurdo, a inferioridade, a patetice, da crença religiosa. Este direito de escarrarmos nas divindades alheias, venham estas em molde uno ou plural. De patearmos a crendice estuporada alheia. De blasfemarmos. De dizermos em públicos, se o quisermos, que sodomizamos os budas alheios.

Se o fizermos sofreremos as sanções morais, seremos considerados malcriados, desrespeitosos, teremos menos convites para jantar, etc. Ok. Eu próprio não convidarei para jantar cá em casa um pateta que ande afirmando ter relações sexuais com buda ou quejandos. Mas temos esse direito, é um direito historicamente conquistado. O de refutar qualquer superioridade das crenças religiosas sobre quaisquer outras, o de não admitir que sejam essas crendices mais respeitáveis do que outras perspectivas. O de não as achar protegidas por umas quaisquer sensibilidades alheias.

Vem isto a propósito de que, mais uma vez, me surge um intelectual a negar esse direito, como se fosse somenos. Agora é o sociólogo moçambicano Elísio Macamo, como antes foi o padre brasileiro Leonardo Boff (e tantos velhos e neo-comunistas que o apoiaram e subscreveram), como também antes foi o cristo-socialista Guilherme Oliveira Martins (a este ouvi-o impor limites à blasfémia, diante da conivência imbecil de uma plateia de lisboetas pró-socialistas). A dizerem-nos que não temos o direito de afirmar o absurdo que é a crença religiosa, de com ela gozarmos, da necessidade de respeitar as sensibilidades dos crentes.

Que fique explícito, esse respeito é uma opção. Não é um dever. E num mundo afrontado pela violência do fundamentalismo hindu e do islâmico, bem como pelo crescimento do cristão, como se nota nos nossos mais próximos Brasil e EUA, andar a pactuar com estes melífluos bem-pensantes é andarmos a chocar o ovo da serpente. Não se trata, entenda-se, de combater deus ou os deuses. Pois inexistentes. Mas sim esta gente. Que, na sua malvadez, nos quer destruir a democracia, “frágil, imperfeita e sempre corruptível” como disse Bobbio. A qual se fez com e no direito à blasfémia. Há que os combater. E principalmente os que aparentam ser mais simpáticos, democratas, evoluídos. Que são “Cavalos de Tróia” dos exércitos totalitários. Verdadeiras obras demoníacas.